Ontem arrasto o esqueleto por baixo de um calor tropical até à repartição de finanças da minha zona. O Estado, essa vaca de tetas secas, repescou-me o I.R.S. para auditoria, a querer que eu explicasse coisinhas sem importância - o iate, as vivendas no Algarve (só uma é cobardia), os terrenos na Suíça (porque não cabe na cabeça de ninguém querer um pedaço de relva fria na Suíça), a ilha privada na Polinésia e outras trivialidades materiais que adquiri, apesar de auferir um salário mínimo.
(Note-se que aqui se encontra subjacente o segredo da fuga ao fisco portuguesa: a "petite nuance" que separa "o" salário mínimo (artigo definido que corresponde à quantia convencionada) de "um" salário mínimo (que depende, claro está, da consciência de cada um e aí, meus amiguitos, ninguém tem o direito de julgar!!!)
Chego ao arejado e ergonómico espaço, retiro a senha, aguaaaaaaaaaaaaaardo a minha vez, dirijo-me ao balcão e saco dos papelinhos.
"Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaahhhhhhhh, estamos sem sistema!" "Sem sistema?!... E agora?! Não dá para...."
Sento-me, consternada e aguaaaaaaaaaaaaaardo.
"...Ai, mas este não pode ser o responsável! Sem domicílio fiscal definit..."
Corto a conversa, na interrogação vomitada a medo: " O sistema já...?". Não, o sistema nada. Torno a sentar a perna lesionada.
"...Pronto, então deixa o 7º, mas tem que ter o contribuinte do senhor!"
A funcionária e o contabilista rezingam, fazem as pazes, discordam, arrulham e decidem finalmente a trégua. Eu agradeço interiormente a ausência de propagação de sons fiscais e números e alíneas, mas o silêncio é curto. Bem entrego lânguidos olhares à funcionária, mas sou recebida com um aceno negativo. O sistema, ai o sistema.
Alinha-se assim a próxima vítima. Eu volto ao enredo da bezerra e acordo com outra hostilidade aberta:
Enfim, não variou muito destas linha, com o cruel mote "... pois, só que agora TEEEM que pagar os cento e vinte e cinco euros!" repetido em tom estridente, a coçar aquela notinha particularmente irritante e aguda que que causa enxaqueca a qualquer par de ouvidos minimamente... humanos.
A sentenciada desocupa o balcão, penduro-me eu no espaço vazio e desta vez a sorte (a tal que lixou o sistema) finalmente me bafeja a face. Entrego o papelucho outra vez, junto o Cartão de Contribuinte, ouço o "tic tic tic tic" de 10 teclas e de repente um "Aaaaaaaaahhhhhhh. Isto não é nesta repartição!"
Todo o sangue se reúne nas faces (fui eu operada por causa da má circulação e afinal é assim que se puxa o sangue das pernas! Porque é que não pensei nisto antes, caramba. Uma ida semanal a uma repartição de finanças e tinha metade dos derrames), a mostarda está concentrada no nariz. A minha ira foi invocada.
"Como é que não...?!?!?!"
Para encurtar a história, que a memória é muito fresca e dolorosa e parece que sinto azia outra vez, depois de consultarmos o livro com os códigos postais, olharmos para o cartão, conferirmos o B.I., alterarmos no sistema e eu sei lá que mais... Dei por mim finalmente a abandonar o consultório de tributação, deixando para trás perto de uma dezena de carinhas tristonhas e desconsoladas e tentando não me desesperar com o facto de
"...É que faltam aqui os recibos de renda dos meses de...!"
ter que lá voltar amanhã.
Não me interpretem mal. Não me estou a queixar da funcionária. A senhora estava sozinha e aflita (muito triste) e de facto fez o melhor que podia e de facto não tem culpa de ter a voz estridente e de facto lá que tentou, tentou. Ainda assim... Um Valium, por favor.