Wednesday, August 03, 2005

Outros males.

A administração pública mata-me. Eu bem sei que acabo de sair do hospital. Eu bem sei que a pernita ainda chora a ausência daquela veita saidita, azul-esverdeada, que latejava, pulsante, atrevida, de cada vez que os rigores de um dia mais esforçado ou um funana mais violento a picava. Está claro que ainda nem convalesci própria e definitivamente do esquartejamento do membro inferior esquerdo (é a perna, palermas. As mamas ainda não tão assim tão descaídas, táaaaa?). Mas a administração pública faz-me mal, é mesmo assim. Põe-me doente, não há outra opção. Envelhece-me a cútis. Dá-me taquicardia. Estrambelha-me o estômago. Enfraquece-me o cabelo.

Ontem arrasto o esqueleto por baixo de um calor tropical até à repartição de finanças da minha zona. O Estado, essa vaca de tetas secas, repescou-me o I.R.S. para auditoria, a querer que eu explicasse coisinhas sem importância - o iate, as vivendas no Algarve (só uma é cobardia), os terrenos na Suíça (porque não cabe na cabeça de ninguém querer um pedaço de relva fria na Suíça), a ilha privada na Polinésia e outras trivialidades materiais que adquiri, apesar de auferir um salário mínimo.

(Note-se que aqui se encontra subjacente o segredo da fuga ao fisco portuguesa: a "petite nuance" que separa "o" salário mínimo (artigo definido que corresponde à quantia convencionada) de "um" salário mínimo (que depende, claro está, da consciência de cada um e aí, meus amiguitos, ninguém tem o direito de julgar!!!)

Chego ao arejado e ergonómico espaço, retiro a senha, aguaaaaaaaaaaaaaardo a minha vez, dirijo-me ao balcão e saco dos papelinhos.

"Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaahhhhhhhh, estamos sem sistema!"

"Sem sistema?!... E agora?! Não dá para...."

"Sem sistema não lhe consigo fazer nada. Experimente esperar um pouco, isto às vezes... pode ser que...! Sente aí que eu vou despachando aqui este senhor..."
(Reparem bem aqui no estímulo e na fé: "Experimente!", o repto de inovação que com certeza é já reflexo da política de "Tecnologia e Inovação" do fotogénico Sócrates e "Pode ser que...!", porque este é um país de esperança, porque não nos deixamos abater pelas circunstâncias, porque foi assim que chegámos à Índia por mares nunca dantes navegados.)

Sento-me, consternada e aguaaaaaaaaaaaaaardo.

Nos momentos em que não ocupo a mente com a morte da bezerra (um mistério que há anos tento deslindar e não há maneira de lá chegar... Afinal como morreu esse precioso bovino, misericórdia?!), captam-me os ouvidos doces trechos deste género:
"...Ai, mas este não pode ser o responsável! Sem domicílio fiscal definit..."
"...Mas já lhe expliquei que..."
"...É porque não é o artigo 7..."
"...Mas repare que o artigo 7 diz..."
"...Tem que ser o 16 ou o..."
"Não , desculpe, eu leio e interpreto que..."
"...ou é o 16º ou o... Não, é que o 7º não pode..."

Corto a conversa, na interrogação vomitada a medo: " O sistema já...?". Não, o sistema nada. Torno a sentar a perna lesionada.

"...Pronto, então deixa o 7º, mas tem que ter o contribuinte do senhor!"

"...Mas se já disse que...!"

A funcionária e o contabilista rezingam, fazem as pazes, discordam, arrulham e decidem finalmente a trégua. Eu agradeço interiormente a ausência de propagação de sons fiscais e números e alíneas, mas o silêncio é curto. Bem entrego lânguidos olhares à funcionária, mas sou recebida com um aceno negativo. O sistema, ai o sistema.

Alinha-se assim a próxima vítima. Eu volto ao enredo da bezerra e acordo com outra hostilidade aberta:

"...pois, só que agora TEEEM que pagar a multa!"
"...mas se me informaram nas Finanças que o modelo não precisava de..."
"... pois, só que agora TEEEM que pagar os cento e vinte e cinco euros!"
"...mas repare... Eu não sabia, logo perguntei, a resposta que me deram foi.."
"... pois, só que agora TEEEM que pagar os cento e vinte e cinco euros!"

Enfim, não variou muito destas linha, com o cruel mote "... pois, só que agora TEEEM que pagar os cento e vinte e cinco euros!" repetido em tom estridente, a coçar aquela notinha particularmente irritante e aguda que que causa enxaqueca a qualquer par de ouvidos minimamente... humanos.

A sentenciada desocupa o balcão, penduro-me eu no espaço vazio e desta vez a sorte (a tal que lixou o sistema) finalmente me bafeja a face. Entrego o papelucho outra vez, junto o Cartão de Contribuinte, ouço o "tic tic tic tic" de 10 teclas e de repente um "Aaaaaaaaahhhhhhh. Isto não é nesta repartição!"

Todo o sangue se reúne nas faces (fui eu operada por causa da má circulação e afinal é assim que se puxa o sangue das pernas! Porque é que não pensei nisto antes, caramba. Uma ida semanal a uma repartição de finanças e tinha metade dos derrames), a mostarda está concentrada no nariz. A minha ira foi invocada.

"Como é que não...?!?!?!"

"...porque nesta morada o bairro é..."
"...mas se está escrito no cartão que é este bair..."
"...Pooooois, mas está errado e isto tem que ser alterado..."
"...mas então foi erro de quem emitiu..."
"...Pois, claro, não é sua culpa, nem a minha, mas agora o que..."

Para encurtar a história, que a memória é muito fresca e dolorosa e parece que sinto azia outra vez, depois de consultarmos o livro com os códigos postais, olharmos para o cartão, conferirmos o B.I., alterarmos no sistema e eu sei lá que mais... Dei por mim finalmente a abandonar o consultório de tributação, deixando para trás perto de uma dezena de carinhas tristonhas e desconsoladas e tentando não me desesperar com o facto de

"...É que faltam aqui os recibos de renda dos meses de...!"

ter que lá voltar amanhã.

Não me interpretem mal. Não me estou a queixar da funcionária. A senhora estava sozinha e aflita (muito triste) e de facto fez o melhor que podia e de facto não tem culpa de ter a voz estridente e de facto lá que tentou, tentou. Ainda assim... Um Valium, por favor.

2 comments:

Anonymous said...

Cara diva, quão "naïf" a menina é (para algumas coisas, claro está! :P )... não sabe que está em Portugal, o país dos burocratas (in)competentes?!!!!

Gio said...

Tetas secas do governo? eu acho as bem gordas e a pingar. Ficámos foi com a boca do ruminante virado para nós e o aparelho mamal numa ilha em off-shore.
Saudações de alguem com consulta marcada e sem vontade nenhuma.